DICOTOMIAS

MEMÓRIAS, CONTOS E POESIA por Hélder Gonçalves

Musica de Fundo

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

O ILUSIONISTA - Por Hélder Gonçalves

                      



                  O ILUSIONISTA
                           Conto
                        Não devemos devassar tanto a nossa alma
                                  Sob pena de ficarmos irremediavelmente
                                  Desinteressantes
                                                              
                                                    Hélder Gonçalves


No fim da tarde, Natacha, quando lhe era permitido largar as suas tarefas que desempenhava num pequeno bar restaurante, dava sempre um pequeno passeio, botando o olho nas montras das lojas circundantes. Porém, a que mais gostava e lhe despertava mais atenção era o que ali era exposto por uma agencia de viagens.
Ficava a ver todas as imagens do que era anunciado nos cartazes com imagens apelativas, deixando pressupor maravilhosas viagens, pelos locais mais exóticos e remotos do mundo. Sempre alimentara, desde muito nova, o sonho de viajar.


Rondava os vinte e tal anos, loura, alta, com uns olhos azuis e de uma beleza fora do comum.
Emigrante do leste da Europa, conseguiu um dia, romper com o imobilismo e pacatez da sua terra, nos arredores de Moscovo, dando asas ao sonho que acalentava há muito – Ir ao encontro de outras paragens, conhecer o mundo. Depois dos estudos completados, mais se mentalizou nessa ideia. Nada a fazia prender aquele lugar frio e inóspito.  Desde muito nova, mantinha uma independência dentro da organização familiar a que pertencia.
Considerando as tremendas dificuldades económicas sentidas no seu país, facto esse gerador de um elevado surto de emigração, mais, ainda, espevitava o sonho que sempre tivera – Conhecer outras gentes, outros costumes. Seria uma emigrante, como tantas outras da sua terra.
Certo dia tomou uma decisão importante. Iria mesmo viajar.
Com parcos recursos – Alguma poupança amealhada, conseguidas através das pequenas mesadas e alguns dinheiros que havia granjeado através da família, em dias de anos e outros eventos, resolveu, em primeiro passo, e dentro do pequeno orçamento disponível, apanhar um comboio, para Moscovo.
Aí, conseguiu instalar-se, por breve tempo, num pequeno apartamento, num bairro de estudantes onde travou conhecimento com uma rapariga que, ali, também se hospedara. Curiosamente com a mesma idade e, também com a mesma ambição – Emigrar!

Aproveitou esse tempo para durante o dia visitar alguns museus e aquilo que gostava demais – O circo.  Se há setor das artes que tivessem sido privilegiados em qualquer país do mundo, não podemos deixar de ter em conta, o anterior estado soviético, no fomento e apoio que prestara a essa área do espetáculo em particular e da cultura de uma maneira geral.

Natacha, agora, em companhia da recente amiga, tinham tempo para, as duas, pela noite, divagarem, nos bares, onde a juventude, exuberantemente, curtia.

Até que chegou o dia de tomarem a decisão final: A forma como iriam viajar.
Condicionadas, logo à partida, pelo muito pouco dinheiro na carteira, não deixaram de ter em conta que teriam de arriscar, sobretudo, em boleias oferecidas, incluindo a dos camionistas de longo curso.
É evidente que tal decisão comportava riscos de toda a espécie. Mas elas estavam decididas a corre-los. Fazia parte do processo – Não havia alternativa.

Se bem pensaram, melhor o fizeram.  Em boleias e aventuras mil, algumas, até, com trocas de favores sexuais, conseguiram chegar até ao sul de Espanha.
Ao cabo de algumas semanas após terem partido de Moscovo chegaram a uma povoação, numa pequena localidade balnear a despontar para o turismo.

De ano para ano qualquer localidade bem situada no Mediterrâneo, com boas praias, desenvolvia-se rapidamente, absorvendo um tipo de turismo, em principio, exploratório e sem grande qualidade. Depois iam-se transformando, na continuidade das épocas balneares em estancias de turismo, especialmente frequentadas por trabalhadores europeus, nos períodos de gozo de férias.

Toda a logística era montada espontaneamente, onde a construção civil, tinha o maior impacto nesse “boom” de crescimento, ano após ano. Nessas praias quentes do Mediterrâneo, durante a época estival, era dado ver grandes autocarros a despejarem, semanalmente, milhares de turistas, ávidos por curtirem férias ao sol, num ambiente climático de estabilidade garantida.  Tal facto, tinha grande impacto no mercado de trabalho, gerando milhares de postos de trabalho, a maior parte deles empregos de ordem sazonal. Não foi, portanto, difícil, quer à Natacha, como, também, à sua amiga, irem arranjando empregos aqui e acolá, muito especialmente, em restaurantes e bares, uma vez que dominavam razoavelmente a língua inglesa, granjeando assim o seu sustento em trabalhos de carácter provisório

Natacha sempre sonhou dar sustento à sua ansia do desconhecido e da aventura.  Era desinibida por natureza e estruturada por uma educação livre de preconceitos e tabus na área do sexo.  Em encontros fortuitos com diversos parceiros que ia conhecendo, as duas amigas, davam largas aos seus apelos sexuais, em relações meramente ocasionais e descomprometidas, quase sempre acontecidas em noites de esturdia.
Por aqueles lados não faltavam ambientes, a facilitar encontros fortuitos numa loucura em comportamentos completamente desregrados, entre jovens.   Os anglo saxónicos eram os que mais se destacavam nesse estilo de comportamentos até aos limites das capacidades de resistência
Grande parte deles procuravam não se fixar, muito tempo, no mesmo lugar.

Natacha e a amiga, gostaram demais daquela localidade – Oferecia-lhes trabalho, tinha uma praia paradisíaca, apetrechada com tudo o que era necessário para o desfrute do sol e do mar, onde não faltava todo um universo de bares e boites para o curtimento da noite.

Certo dia, um Circo e toda a comitiva assentou arrais nos terrenos baldios no principio do acesso da vila, não muito longe do restaurante onde ela, na ocasião, trabalhava.
Como é característico das gentes do Leste, Natacha apreciava muito esse tipo de espetáculo – Exultava com a magia das luzes, focando os fatos brilhantes dos trapezistas, voando num sincronismo arrepiante exibindo precisão e grande prestação dos seus corpos atléticos. Ela praticara muito, na sua terra, patinagem artística sobre o gelo. Ficara-lhe, assim, o gosto pela arte da acrobacia e os desempenhos de ordem estética aliados a essas atividades físicas.

Naquela noite de folga, decidiu assistir ao espetáculo tão anunciado pelas ruas, em carrinha provida de megafone. Em estridente berraria era anunciado o espetáculo a decorrer pela noite.  Convidou a amiga para ir com ela, mas obteve uma recusa desta, pelo facto de ter conhecido, nesse mesmo dia, um rapaz holandês.
Instalada o melhor possível, num dos lugares da frente, foi aplaudindo as prestações dos diversos artistas nas suas especialidades.  Mas a que mais a impressionou, naquela sessão da noite, foi o ilusionista, por sinal o cabeça de cartaz – O grande mago italiano “Luigi” -  O maior na magia!

Vestido de maneira impecável num clássico paletó “asa de grilo” onde, na banda, assentava uma flor e no imaculado peitilho sobressaia um laço branco, dando realce ao seu porte naturalmente elegante.
No seu cabelo preto, brilhante, bem colado à cabeça, assentava uma cartola. Nas suas mãos, as luvas brancas completavam o traje, segurando um bordão com punho metálico, talvez prata – Quem sabe?.
Natacha entrava em êxtase, com aquele ritmo sincopado em que ele fazia aparecer e desaparecer, lenços de cores matizadas, pombas, sortes de cartas, num movimento lento olhando o publico, impressionante e sem falhas. Os seus movimentos assemelhavam-se, no seu ritmo, aos de um bailarino.
A sua esguia e elegante figura, emprestava-lhe uma dignidade muito especial na presença em palco e aos números que exibia, sempre exuberantemente aplaudidos pelo público. De fato ele era o maior – Era o mago das noites mágicas!
Natacha de pé, era uma das fãs que vibrava intensamente com as magníficas prestações da ilusão.
Era um facto - A figura majestosa do artista perturbara-a profundamente, não lhe tendo passado despercebida, ao ponto de ir para o quarto, partilhado por mais duas amigas, a pensar breves momentos naquela visão mágica quase, esfíngica, de Luigi – O mágico!

Foi com grande surpresa que, no dia seguinte, no restaurante onde trabalhava, deparou com o artista –  Ele ali estava, bem perto dela, sentado numa mesa, sozinho, para almoçar.
Reparou que, mesmo sem a mais valia que o traje de trabalho oferecia à dignidade da representação e, também, à idade já denunciada no seu rosto – Talvez, uns cinquenta e tantos anos – Mesmo assim, continuava a ser um homem bonito e de extrema elegância.  As rugas, bem vincadas no rosto, davam-lhe um ar de majestosa maturidade.
Natacha, visivelmente satisfeita com o acontecimento, não perdeu tempo. Correu na direção da mesa onde tal personalidade se sentara, estendendo-lhe, de certa forma precipitada, a carta do menu.
Luigi, por sua vez, não deixou de reparar na precipitação de Natacha. Olhou para ela, surpreso, dedicando-lhe alguma atenção. Reparou com agradável satisfação que, na sua frente, estava uma jovem extraordinariamente bonita.
Sorriu-lhe, aceitando a carta da sua mão um pouco trémula.  Natacha, num bom inglês, interpelou-o de imediato:
- O senhor é o ilusionista Luigi?
– Sim sou eu mesmo,
– Em que lhe posso ser útil, respondeu-lhe admirado e de sorriso aberto
– Oh, desejaria tanto um autógrafo seu! Sabe, é que sou sua admiradora.
- Gostei muito do seu número de ontem, fiquei fascinada.  Admirei sempre a arte da magia.  Na minha terra, não perdia um espetáculo de circo!
- De onde é, interrogou Luigi.
- Da Rússia
- Oh – Grande país de lindas mulheres, retorquiu-lhe galanteador.
Luigi quase de imediato e numa pequena folha de papel colorida onde era anunciado o espetáculo que, entretanto, lhe fora cedida por ela e retirada do bolso do avental, rabiscou, então, o seu autografo, por cima da sua fotografia, amarrotada, com uma dedicatória a preceito: “Para a minha bonita admiradora, com grande simpatia”
- Já agora, diga-me o seu nome, desferiu ele, aproveitando a ocasião.
-Natacha, respondeu-lhe, pedindo-lhe que o escrevesse para melhor completar a dedicatória.
Entretanto, foi rapidamente surpreendida pelo olhar atento e reprovativo do patrão - Um belga de poucas falas - Ele fizera-lhe um sinal para ela se afastar - Não permitia que as empregadas ficassem à conversa com os clientes. Luigi, ainda lhe disse, com ela a afastar-se e a olhar para trás - Tenho muito prazer em lhe oferecer bilhetes para si e quem mais querer levar a ver o espetáculo, sempre que desejar.

Natacha a partir daí, ficou presa aquela imagem quando, Luigi lhe devolveu o pequeno cartaz por ele autografado, com um olhar intencionalmente penetrante a pretender captar, em breves segundos, tudo o que ia na sua alma, naquele fugidio e preciso momento.
Falara, à noite, com a sua amiga Ana, a companheira de viagem, sobre este assunto e o homem que estava tanto a bulir com ela.  Porém, a amiga, em risadas incontidas por visionar uma situação tão desajustada ao seu perfil, - De mulher prática, descomprometida e a curtir a vida sem qualquer outra preocupação que não fosse simplesmente curti-la! -   Não queria, pois, acreditar naquilo que estava ouvindo – Natacha a confessar-lhe que estava gamada por um homem “já fora de uso!”  Isto não fazia parte do seu estilo – jamais! Mas cada um que orientasse a vida como melhor entendesse – Amigo não empata amigo! E ela não era lá muito do jeito a dar conselhos.
Apesar disso, as idas ao circo, continuaram, a partir daquele dia. Logo nas primeiras filas aí estava ela a aplaudir entusiasticamente Luigi – O seu grande herói -  Aquele que a fazia sonhar, numa envolvência artística que a fascinava, sobretudo por aquela figura esguia, qual Deus misterioso que, em sortilégios maravilhosos, manipulava e exibia os seus poderes quase sobrenaturais.


Nessa noite e dando seguimento ao que fora combinado, numa das idas de Luigi ao restaurante, Natacha, não foi para o pequeno quarto onde era costume dormir. Luigi apercebeu-se, no fim da sua atuação, a partir de um breve sinal que ela pretendia falar com ele. Assim aconteceu. Natacha esperava-o próximo da porta de saída.
Com visível satisfação de Luigi ao deparar-se com aquela rapariga, à sua espera. Não perdeu tempo a oferecer-lhe o seu braço para depois seguirem, naquela noite quente, pelo passeio, na marginal, à beira de um mar sem ondas em que o luar, nele refletido, emprestava-lhe uma beleza de serenos movimentos, em cor de prata.
Seguiam mudos. Ela não estava bem acostumada aqueles tiques de gentileza latina de caminhar de braço dado. Porém, naquele momento, os sentidos falavam mais alto. As palavras eram desnecessárias. Ela unicamente sentia o seu cheiro e a sua presença máscula. Conseguiram, pouco depois, entrar num bar, daqueles que, fecham, até que os retardatários já não falam, encharcados pelas bebidas.  São aqueles que ficam até ás últimas consequências do último copo. Os dois ficaram, também, bebendo e conversando, animadamente, pela noite dentro, até que, o dono do bar, começara a fechar as portas do estabelecimento. Todos se levantaram – Uns mais embriagados que os outros – mas todos conseguiram sair sem confusão. Completamente bêbados!

Depois disto e sem saber como, Natacha, estava a subir os degraus que davam acesso à grande “roulote” onde Luigi habitava, possuída de um enlevo que lhe dava a sensação de flutuar nas nuvens. Um frémito de desejo percorria o seu corpo.  Naquela pequena habitação, ela começara a sentir toda uma envolvência da presença daquele homem, do seu cheiro, do gosto patenteado numa decoração apelativa à intimidade. Tudo lhe parecia acolhedor propicio ao amor! Estava ardendo de desejo!
Mesmo considerando o pequeno espaço, essa particularidade era o registo que ficava do seu utilizador.
Embora a sua juventude fosse marcada pelo sentido prático da vida, Natacha, era sensível à beleza – Ela era orfã de pai e de mãe, lutadores antifascistas que desapareceram nos confins da Sibéria, por não estarem de acordo com a ditadura estalinista. Ela fora, então, adotada por um casal amigo dos pais, ligados ao mundo das artes – A mãe adotiva era professora de canto e o pai era escritor - Crescendo, desde muito nova, num ambiente fora do comum em que, a arte, era o oxigénio respirado, nas tertúlias caseiras daquela família.

Luigi era efetivamente um verdadeiro artista – Utilizava a sua arte, com exuberância, também, para projetar um ambiente de magia – Ele sabia quanto impressionava Natacha. Nessa noite, em sessão privada, vestiu o seu roupão de veludo, com um monograma bordado com as iniciais do seu nome.
Em redor do pescoço, um lenço branco compunha a sua figura cuidada, dando-lhe um certo toque boémio.
Natacha, deitada num maple que servia, também. de cama, aconchegada nas fofas almofadas de conforto, assistia extasiada às diversas sortes de magia que, Luigi, caprichava exibir, em ritmados e exuberantes gestos, para interagir com um público imaginário, em que ela se destacava, no seu olhar preso em si.
Nesse momento só ele existia e o seu mistério de homem solitário, bem curtido pela vida em que, histórias mil, estavam contadas nos sulcos do seu rosto.  Ali, naquele grande/ pequeno espaço – Era ele Luigi, o maior, o misterioso mago!
A noite terminou com os dois enleados no mesmo abraço.  A primeira luz da manhã esgueirava-se, agora, através dos pequenos cortinados salpicando de luz os corpos envolvidos, na apertada cama, daquele improvisado apartamento, depois de uma refrega de sexo em que, Natacha foi, então, ela, a grande artista convidada, - A maior na magia dos sentidos, num desempenho e perfomance exemplar, mostrando a sua capacidade nessa matéria, apoiada na força que a sua juventude lhe emprestava.

Começara a amanhecer, quando, ela, libertando-se lentamente dos braços de Luigi, pegou nas suas escassas roupas e, pé ante pé, deixou a caravana, seguindo célere pelas ruas desertas em que uma suave brisa acariciava o seu rosto, num culminar de sentimentos de grande prazer e felicidade.
Alguns convivas, dispersos, deambulavam pedrados - Seguindo às umbigadas, de braço dado - Para melhor se aguentarem de pé e não se estatelarem no chão!
Chegou pouco depois, ao apartamento, caindo na cama deliciosamente exausta não tardando em adormecer. As amigas ainda dormiam, não dando pela sua entrada.

O relacionamento com Luigi ia-se mantendo numa cadencia frequente. Sempre que o espetáculo terminava, depois de largar o serviço, seguia ligeira para junto do seu ídolo onde, depois, curtiam, bebendo e, sobretudo, trocando exuberantemente, após sessões privadas de magia, os inegáveis prazeres de um bom sexo, assegurado pelas prestações de Natacha - Nesse domínio especifico em que era uma verdadeira “expert.” Ela separava, de forma bem distinta, o prazer meramente sexual do que poderia advir de uma profunda envolvência sentimental. Porém não era mulher de nunca deixar de por uma certa pitada de sentimento em certas e determinadas relações descomprometidas em que o sexo estivesse envolvido.

Neste caso, para bem dizer, tal desempenho era muito conseguido, em grande parte e em abono da verdade, pelo efeito muito especial que, os truques de magia exibidos pelo grande mestre Luigi, despertavam no imaginário e nos sentidos de Natacha, atraindo-a para aquele homem que a perturbava, no seu intimo, não só pelo seu aspeto de madura masculinidade latina, mas também pela curiosidade, da arte que ele tão bem e magistralmente desenvolvia em que indefinidos sentimentos se  misturavam, dando braços ao seu incontrolável e insaciável desejo. Talvez consequência de ter feito parte, na sua juventude, duma pequena e limitada comunidade permitindo-lhe ultrapassar as limitadas barreiras do isolamento, refugiando-se no seu lado sonhador.

Luigi, homem bem experiente das longas “tournés” da vida e da arte da sedução, como bom italiano que era, e da cultura herdada, tradicionalmente reconhecida nas conquistas amorosas em que a latinidade era um elemento fundamental na gestão apaixonada dos sentimentos.   Luigi, revestia-se de todos os cuidados perante aquela jovem.
Com o instinto peculiar de conquista, bem demarcado no seu “ADN,” ela representava, mais uma, a contabilizar na lista do seu bem recheado cardápio amoroso.
Sabia quanto a impressionava, tentando recriar um ambiente refinado em que ele era o principal personagem, catalisador de ilusões, no imaginário daquela jovem rapariga que, ainda e acima de tudo, tinha uma alma sonhadora.

Em muitos tempos atrás, na sua querida cidade de Roma, ainda muito novo, antes de se interessar pelo circo, divertia-se com o emprego que arranjara – um improvisado de guia turístico talvez, para não lhe chamar de um mais condizente com a sua atividade no momento: O de “gigolo”
Tivera sempre um físico extraordinário, permitindo-lhe uma boa dose de sucesso, junto do pessoal feminino, muito especialmente das turistas estrangeiras. Algumas ligações, foram avassaladoras, carregadas de episódios, de momentos de paixão e sexo, ganhando, sempre, bom dinheiro, através das mulheres já avançadas na idade. Nunca conseguiu manter, porém, uma relação estável e duradoura. Era bastante confiante nas relações com o sexo oposto, talvez por, nesse campo, não contabilizar derrotas. Adorava demasiado as mulheres para só a uma pertencer tornando-se, por esse facto, um libertino assumido.

Quando, um dia, certo empresário de origem húngara, reparou na sua figura e arte de comunicar, depois de um certo dia o ter observado, numa esplanada de um Café, em Roma, e ter constatado a facilidade com que ele interagia com os estrangeiros, convidou-o a ingressar no elenco do seu circo como mestre de cerimónia, na apresentação dos respetivos números.
Ele abraçou de braços abertos tal oportunidade já que era uma ótima ocasião para fugir do ambiente fascista que grassava em Itália e, assim, talvez poder escapar ao ingresso nas hostes legionárias fascistas de Mussolini.

Desde então, nunca mais pensou em escolher outra atividade - descobrira que era, efetivamente, aquilo que queria fazer na vida. Dava certo com o seu perfil de homem irrequieto, leviano e aventureiro, sem qualquer projeto futuro, que permitisse assumir, um dia, uma relação séria na companhia de uma mulher.

Foi, assim, pouco a pouco, estudando a arte da magia. Para tal teve a sorte de conhecer, no circo, um velho artista do ramo.  Com uma grande ajuda desse amigo e colega da arte da ilusão e, também, companheiro das grandes tournés, por esse mundo fora, foi aprendendo os diversos truques da arte.  Poucos anos depois.com a morte desse velho e grande amigo, herdou todo o material, bem como o registo de alguns truques que ele sempre conservara. Por outro lado, esta vida artística, proporcionava-lhe viajar por todo o lado, considerando a solidez empresarial do Circo, bem gerido quer na parte artística como, ainda, na parte financeira.
Também era um facto incontestado que, ele, era altamente respeitado pela excelência dos seus espetáculos.  Era minucioso e um perfecionista no seu trabalho. Muito embora lhe fosse reconhecida uma vida conturbada de ligações amorosas mais ou menos fugazes, mas sempre avassaladoras.

Os anos foram passando. Com ele iam ficando recordações de toda uma vida bem recheada de encontros e desencontros amorosos em que o iam marcando, cada vez mais, deixando-lhe também, ultimamente, alguns estragos, no seu coração de homem solitário.

Natacha, sentia-se atraída - quase que obcecada -  por tudo o que, aquele homem, despertava nela.
Não sabia bem identificar este novo sentimento, nem tão pouco estava muito interessada em faze-lo.
Não tinha apetência, nem sequer tempo vivido para se dar ao luxo de divagações filosóficas da vida, preferindo, antes e simplesmente, viver – Mas, uma coisa era certa – Nutria por ele um fascínio e uma grande curiosidade.  Este estado de alma perturbava-a de certa forma, dando-lhe uma outra dimensão sentimental, bastante agradável, mas no caso dela curiosamente obcecante – O que lhe assentava num jeito atípico.

Luigi estava, por sua vez, a ficar confuso com o que lhe estava também a acontecer.
A soberba arrogante de macho latino e de sedutor credenciado que lhe vinha conferindo aquela segurança de pisar um terreno bem conhecido, em que era sempre o dominador, estava a ser de certa forma abalada e posta em causa por aquela bonita e despreocupada jovem.

Com efeito, já se interrogava sobre o que lhe estava a suceder – Ela estava, mesmo, a bulir com ele mais do que era normal, minando a sua segurança e o habitual controlo sentimental. Um dia, deu-se ao desplante e à bobagem de lhe prometer que lhe demonstraria alguns truques da sua arte de magia, sempre até então, ciosamente guardados, por critérios de salvaguarda da sua profissão. Seria que estava mesmo definitivamente a envelhecer? Interrogava-se com alguma angustia e preocupação.

Certa noite, ao regressarem do Bar, em que era frequente conversarem, e já bem instalados na caravana, numa envolvência intimista e repleta de cumplicidades nos seus olhares, Luigi, pacientemente, foi demonstrando como eram realizados alguns truques das magias que mais a fascinavam. Ele tinha necessidade de ofertar qualquer coisa de importante, aquela rapariga e nada havia de mais sagrado que alguns segredos dos seus truques – Queria, assim, dar-lhe uma prova do amor que estava a sentir.

Com os olhos arregalados nos desenvolvimentos das sequencias dos truques que estavam a ser explicados, Natacha ia sentindo, à exata medida que se iam sucedendo, uma sensação desconfortável e de perplexidade que a confundiam estranhamente. De repente – Como se despertasse de um sonho, ela ia dando conta que, dentro de si, estavam a surgir sentimentos confusos e algo perturbadores, como se fosse uma indigestão após uma farta refeição e, também, como o ruir de um baralho de cartas.

A ilusão dissipava-se inexoravelmente depois de saber como aqueles truques eram feitos.
Curiosamente, a figura daquele homem, ali, à sua frente, reduzia-se, agora, a uma insignificante personagem, - Como era possível ela estar ali, naquele lugar, com aquele homem muito mais velho?
Despertava de um sonho em que, a realidade, sobressaia de forma implacável.

Então, um sentimento de rejeição apoderava-se dela de forma perturbadora.  Reparava, agora, mais atentamente, nas rugas daquele rosto, naquele fato pendurado, já um pouco coçado, naquele espaço reduzido em que alguns cartazes de espetáculos de datas muito anteriores colados por detrás de um pequeno roupeiro, a evidenciar fotos de Luigi.  Afigurava-se-lhe, agora, estar completamente fora do contexto a que ela naturalmente pertencia e despertar numa vivencia que não era de todo a sua.
Tudo, agora, lhe parecia imensamente pequeno! Asfixiante, fora de uso! Até o cheiro que tanto a inebriava, era, agora diferente e esquisito.
Uma dor no estomago, seguida de um enorme desejo de vomitar, com a cabeça andando à roda, tomavam conta dela.
Apercebeu-se que experimentava uma nova sensação tremendamente desconfortável de rejeição.
Tinha de sair dali. Ela não pertencia aquele mundo. Não compreendia o que se estava a passar - Sabia, sim, que tinha de sair o mais rápido possível.

Na sua frente, sem se aperceber, Luigi continuava mostrando os truques das magias que tanto a tinham entusiasmado, mal cuidando que, agora, estavam, ao invés e impiedosamente, desencadeando estranhos e confusos sentimentos em Natacha.
Era como se ela, abruptamente, tivesse despertado de um sonho!  As dores de estomago aumentavam e uma certa desorientação avizinhava-se com rapidez.
De repente, num gesto irrefletido, levantou-se e com um ar lastimoso pediu-lhe desculpa - Tinha de retirar-se de imediato, pois acabara de sentir uma tremenda dor abdominal.
Luigi inconformado e perplexo por esta atitude completamente inesperada, prontificou-se acompanha-la ao seu apartamento, ao que ela recusou enfaticamente, despedindo-se, logo de seguida, com um beijo sem chama, quase formal.

Já, na rua, Natacha, correu solta como um animal livre, sentindo a briza do mar a acariciar-lhe o rosto. À medida que se afastava daquele local, ia sentindo um inefável sentimento de liberdade.

No dia seguinte, pela manhã cedo, contou à amiga tal mudança operada nos seus sentimentos. Ela não ficou nada admirada – com um riso frenético disse-lhe que há muito estava esperando por esse desfecho.  Tal romance, para ela, não assentava bem no perfil da amiga. Com grande alegria e abraçada a Natacha, fez-lhe depois uma proposta: acabara de conhecer no bar dois jovens franceses, estudantes que estavam de passagem e se dirigiam para Portugal num WW “carocha”
Que tal aceitar o convite deles?
Esta situação ajustava-se naquele preciso momento ao problema de Natacha, proporcionando-lhe aquilo que queria mesmo fazer, fugir imediatamente dali, fosse para onde fosse, mas que lhe desse de volta a estabilidade emocional que estava francamente a precisar.
Não queria mais pensar naquilo que lhe acontecera ultimamente.
A sua amiga exultou com tal decisão, tomada tão rapidamente, pois sabia que era o melhor desfecho para que Natacha não viesse a sofrer com tal atípica relação.

Nesse mesmo dia, ao entardecer, atirando com as mochilas para dentro do velho WW de cor amarela, seguiram rumo a Portugal.  A aparelhagem sonora bombava com toda a força dos seus muitos decibéis.

Uma manifestação de liberdade e de alegria era a nota dominante daqueles jovens. Natacha voltara à estrada – Estava feliz. Era novamente uma mulher livre

                                                
                     


Outubro 2012


9 comentários:

  1. A verdade espanta gente fraca quase tudo no casal foi uma ilusão,desde o começo,um conto bem descrito Hélder.Irei adcionar esse sitio na minha lista especial também.Abraço

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    1. Bem Hajas João Mariano pelo teu comentário e por teres adicionado este espaço à tua lista especial. Um grande abraço-
      Hélder Gonçalves

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  2. Confesso-te,meu Anjo, que ao terminar a minha primeira leitura

    dessa tua nova obra " O Ilusionista" senti-me completamente passada (risos),n'uma ambivalência entre a surpresa e a não aceitação dos actos de ambos os personagens, em especial o da Natacha.

    E na altura do acontecido, pasmei-me n'um tal silêncio de palavras e expressões que,agora relembrando bem,deixou-te confuso com a minha reação.

    Mas, passado o primeiro choque e depois de outras tantas releituras, já mais familiarizada com as personalidades do Luigi e da Natacha.

    Mas antes de aprofundar-me mais além no campo psicológico,emocional e racional desses seres tão ricos as quais, Tu nos deu a honra de vir a conhecer,desejo sinceramente congratular-te pelo objectividade primorosa da tua expressividade na costrução dos cenários que deserrolam-se na mente do atento leitor a medida que vai lendo-te.

    Os movimentos do quotidiano da Natacha em seu trabalho no pequeno bar, que nas entrelinhas apetece alí estar para ser-se servido pelo brilho da sua juventude e capacidade singular de lutar pela realização dos seus sonhos e tal energia torna-se contagiante a ponto do mais simples drink, tornar-se como uma espécie surpreendente de néctar dos deuses.

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  3. Acompanha-la despreocupadamente pelas ruazinhas de sua cidade, apreciando as novidades inusitadas das montras em exposição, aqui e acolá permitindo-se escapar um "oh!" com essa ou aquela peça especialmente bonita ou original, fazendo com que por alguns momentos a frieza da clima tão cinzento do lugar seja esquecida.

    Diante dos meus olhos vi uma rapariga cheia de vida e saúde, dona d'uma beleza luminosa, transbordando alegria de viver e uma sede selvagem de sorver o mundo em todo seu explendor,uma rapariga rica em seus sonhos, em sua coragem de arriscar a segurança do lar,da familia,de tudo que lhes é tão conhecido e concreto para correr sem temores para atender a sedução irresistível da ponte aventureira que lhe acena rumo ao desconhecido.

    É admirável como nos prende e fascina o relembrar de como é delicioso, sentir no peito o coração acelerar, sentir o sangue quente a correr através das veias e na alma o sentido do novo nascendo,brotando com a força total da vitalidade e nesses instantes, temos consciência do quanto o comodismo exagerado pode atrofiar a cerne humana.

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  4. Sei que a familiade da rotina das nossas vivências faz parte da harmonia,da serenidade para ter-se vitória no dia a dia,não só para nós para para com todos aqueles que nos são caros, mas acredito também que quando nos deixamos sem perceber cair no marasmo de pesadas responsabilidades, incosnciente passamos da tendência para o hábito de carregar pesado fardo e com isso,cairmos na inércia não só do tédio, mas também da falta de perspectivas, da inapetência de querer ver novos horizontes, de acreditar na beleza do que se há no fim de um novo arco-íris e o modo de estar na vida da Natacha, faz com que o nosso chão emocional trema e trema núm sismo de despertamento para o chamamento da vida em suas dimensões.

    Lembro dúm dito da minha Voikamina que ela dizia:Para sermos prudentes ao brincar com a beleza e o calor do fogo, por que ele para além de aquecer, também queimava.

    Pois é isso mas como costumo dizer: A linha que separa a prudência da cobardia é muito ténue e difícil de ser percebida, por isso há que cuidar,para saber separar e perceber quando está a cultivar ou uma ou outra e o mesmo ocorre com o senso d'aventura e o comodismo.

    A medida que a Natacha vai vencendo as barreiras de suas limititações e vai cada vez mais aproximando-se da realidade do que sempre sonhou, nós leitores vamos nos sentindo empolgados,vibrantes com os novos sons, novas cores e traços não só do concretismo que se abre diante dos olhos dela, mas também com a tremenda felicidade,felicidade quase inebriante de sentir-se capaz de criar paraísos, shangri-lás, de criar novos rumos,para céus desapegados de falsas moralidades.

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  5. Pelo que percebi, mesmo carregando a marca da orfandade, essa rapariga teve a sorte ter ao pé de si pessoas cultas,inteligentes,pessoas sensíveis e generosas,livres pensadores como pais adotivos e creio que foi exactamente essa convivência,que a ajudou a ultrapassar o trauma da perca, para a visão da gratidão de ter tudo o que um ser humana conscientemente poderia desejar,caso pudesse fazer certas escolhas e foi justamente essa oportunidade ímpar que a vida lhes deu que a ajudou a ter sua psiqué esculpida em um formato de certo modo forte e pespicaz, com um olhar agudo e análitico para enxergar um pouco mais além do usual.

    É nesse parte que defrotei-me com algumas temáticas,deveras de suma importância para o equilibrio da conhecida sociedade moderna e o conceito do que é visto e sentido como humanidade no que abrange o tão conhecido chavão: "curtir a vida", denro dos parametros dos valores morais advindo dos subcampos dos valores familiares.

    Primeiro: É no desenrolar nas entrelinhas riquissimas que tua escrita nos concede a capacidade de ir além com calma a analisar profundamente e com sinceridade o quanto e do porque, o exterior pode afectar o interior da racionalidade humana e o seu desenvolvimento, a estrutura física do habitat natural e seus componentes influencial oa face final do produto.

    Segundo: A logística da capacitação desse produto de manter-se e crescer na selva da humanidade dentro de todos os principais aspectos.

    Sem querer alongar-me,mas apetecendo continuar, encerro por aqui com uma série incontável de perguntas que rondam-me o cérebro a respeito dos perfis que identifico e vejo-me atraida pelo Luigi e a Natacha, por exemplo:

    Será que foi esse mundo liberal a qual seus pais lhe deram que a fez de certo modo ser tão materialista em suas escolhas pessoais em relacionar-se com outros seres humanos no campo da amizade e do amor?

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  6. Qual foi o mundo familiar do Luigi para que fosse desenvolvido nele, uma alma tão cínica na sua visão pessoal do mundo e no relacionamento com as mulheres?

    O que foi que o seu velho amigo e mestre viu de tão extraordinário nele, a tal ponto de tomá~lo como pupilo e o tornar herdeiro do seu mais rico legado, o conhecimento?

    São essas e outras tantas interrogações que pululam na minha alma, já apaixonada pela magia do teu magnífico e iniqualável "O Ilusionista".

    Desde já admirada aplaudo-te pela tua capacidade brilhante de levar a nós teus fãs e leitores a sentir-mos presos prazeirozamente a tua teia criativa, repleta de sabedoria e beleza.

    Que como desde sempre tem o condão de transportar-me para além desse merdo mundo dos simples mortais apáticos nas mesmisces, a tua prosa permeada de poesia e encantos inebria e enriquece o espírito,fortalece num conjunto valioso que faz com que nos surpreendamos com a noção de quem como costumas dizer e nisso permita-me parafrear-te: Só que tem coragem e paixão para viver, é que tem história para contar, especialmente e sobretudo histórias reais de vida que vale mais do que a pena documentar e partilhar.

    Com amor beijo-te.

    Ps:

    A época e os locais mencionais esporadicamente no decorrer da obra,para mim são uma formas sublimares, fantásticas de manter-se viva do foi composto o chão da história da humanidade, para chegar no que hoje chamamos de : presente.

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A Sala do Tempo Parado

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Só quem não viveu não tem histórias para contar