Atravessando o deserto:
as três fases de uma luta
as três fases de uma luta
Na eminencia do perigo real, quando a morte nos espreita,em plena consciencia,resta-nos
a dignidade da calma dos valentes
A DÚVIDA
Nas
minhas mãos estava um envelope fechado. Dentro, um simples papel que, no
entanto, iria determinar a minha vida, a partir do preciso momento em que o
retirasse
. Foi o que fiz, com um filme a passar rápido na minha cabeça – a vida pregara-me uma tremenda partida, na altura em que, no goso da minha reforma, como empregado bancário, poderia usufruir de um merecido descanso, após anos de trabalho e, tudo a partir deste momento, estava posto em causa! Com adrenalina a secar a minha boca, li o veredicto que já esperava – “Foram analisados todos os tecidos enviados e, um deles demonstrava estarmos na presença de um carcinoma, com o grau gleasen 8” ( característica considerada altamente agressiva”
. Foi o que fiz, com um filme a passar rápido na minha cabeça – a vida pregara-me uma tremenda partida, na altura em que, no goso da minha reforma, como empregado bancário, poderia usufruir de um merecido descanso, após anos de trabalho e, tudo a partir deste momento, estava posto em causa! Com adrenalina a secar a minha boca, li o veredicto que já esperava – “Foram analisados todos os tecidos enviados e, um deles demonstrava estarmos na presença de um carcinoma, com o grau gleasen 8” ( característica considerada altamente agressiva”
Uma
calma, de súbito, tomou conta de mim. Terminara alí todo um purgatório
corrosivo de dúvidas, fundamentadas em sintomas perturbadores, um calvário de
exames médicos, pareceres clínicos, marcações de consultas e penosas
incertezas. A meu lado, minha mulher e meu filho, partilhavam a minha
terrivel angústia. Agora teria de coexistir com a certeza! Iria atravessar o
deserto tremendamente só, numa luta pessoal comigo próprio e a doença. O
cronómetro começara a contar a partir daquele momento!
A CERTEZA
Voltei-me
para eles e, nos seus rostos, vi consternação. Envolvi-os no mesmo abraço,
dizendo-lhes - estou “ferrado” mas não quero entregar os pontos de
qualquer maneira! Estava, agora, a reunir todas as minhas forças para o
combate.
O
professor, homem de 70 e tais anos, olhava para mim estudando as minhas
reações.por detrás de uma enorme mesa onde assentavam vários adornos e uma
estatueta de loiça, descritiva das diversas partes do corpo humano em secções
descartáveis. Para ele era mais um caso, na sua já longa vida
profissional, para mim era a minha vida que estava em jogo! Depois de uma
expectativa e de um silencio perturbante, o professor fixa-me intensamente e
pergunta-me – está com medo? Achei a pergunta um pouco insólita, pouco adequada
aquele momento dramático, em que não deveriam ter lugar abordagens
exploratorias de carácter psicológico mas, sim, um imediato apoio e ajuda a
digerir tão brutal notícia. Poucos médicos, infelizmente, estão preparados para
lidar convenientemente com estas situações, endurecidos que estão, pela
constante presença destes casos, nas suas vidas profissionais.
Respondi-lhe:
sim, claro que estou com medo, que estava à espera? mas, agora, só penso numa
coisa – lutar com todas as minhas forças. Aprendi, nesse momento, a não ter
medo das palavras que estavam inerentes à doença – iria tratar o boi pelo
nome Diga-me, portanto, quais as hipóteses que tenho? Afirmou-me que havia uma
percentagem razoável de cura, considerando que o processo fora detectado,
ainda, no principio, numa zona limitada em área circunscrita, tudo, depois, era
uma questão de tempo e acompanhamento.
Entretanto,
dáva-me, nota, quais os tratamentos mais adequados ao tipo de tumor
e zona do corpo em que se encontrava: sendo no meu caso, o da próstata.
Foi-me elucidando com bastantes detalhes todo o percurso do combate que
iria ser iniciado.
Depois
de algumas hipóteses apresentadas para o tratamento em questão, a que se lhe
afigurava mais conveniente, seria a hormonoterapia de imediato, a fim de
bloquear a actividade da produção de testosterona, paralelamente
acompanhado de um programa de sessões de radioterapia intensivo durante 40 dias
Era uma
fase em que me agradaria estar, desejando, agora, a sua rápida aplicação, por
entender que começava ali, a luta contra as malditas células que me queriam
minar, multiplicando-se desordenadamente, acabando por tomar conta de todo o
meu corpo! Era a sensação de começar, a partir daquele momento, a estar mais prevenido
para o combate, com as armas mais poderosas e eficazes, conhecidas até ao
momento.
E, foi
assim, após mais alguns exames complementares, que dei entrada no hospital da
CUF – Descobertas, para dar inicio a uma prescrição de 40 sessões diárias
de radioterapia.
Entrei
pois, com uma postura de confiança e, já sem medo, porque, entretanto, tinha-me
organizado interiormente, dando lugar ao renascimento de um outro “eu”
sublimado pela a adversidade e infortúnio, agora preparado, para a travessia do
deserto. Foi um pacto comigo mesmo, porque o touro estava ali, na minha frente,
à minha espera!
O
TRATAMENTO
Sala de espera de
radioterapia
Apontamentos do quotidiano
O
Hospital tinha umas instalações consideradas das melhores no sector.
excepto as que foram, no tempo, destinadas à radioterapia, sobretudo na sala de
espera para os pacientes. Talvez por uma questão de segurança e das
características do material utilizado no tratamento, com aparelhos sofisticados
na emissão de raios X, os serviços teriam de funcionar no segundo piso,abaixo
do nível do chão, sem janelas, consequentemente, com iluminação artificial.
O
mobiliário era o mais simples possível, sem qualquer intenção decorativa,
limitando-se a umas cadeiras corridas, terrivelmente desconfortáveis e
design duvidoso. Um televisor, um armário com serviço automático de cafés, um
dispositivo para água potável, eram os apoios existentes ao serviço dos doentes
e um WC ao fundo da sala.
Era,
portanto, neste ambiente que, os doentes, iríam viver alguns breves
momentos, durante dias a fio, num período altamente dramático das suas
vidas. De certa forma havia um ciclo que permitia, nos mesmos horários,
encontramos as mesmas pessoas, daí alguns contactos foram possíveis
estabelecer, contribuindo para amenizar algumas tensões que todos, de alguma
forma, transportavam .
O meu
nome soou, quando uma porta se abriu. Uma jovem, depois de me
cumprimentar atenciosamente, conduziu-me para uma antecâmara com diversos
compartimentos, onde teria de trocar a minha roupa, substituindo-a por uma bata
de cor azul. Pouco depois e já devidamente preparado, fui encaminhado para uma
sala de contolo com algumas secretárias e monitores, assistidos por técnicos
bastante novos que monotorizavam todo o funcionamento da grande máquina de
feixes de raios X Havia uma divisão altamente blindada, tipo casa-forte de
um banco, aí, esperava-me outras assistentes que, com simpatia, ajudavam a
instalar-me convenientemente na marquesa onde a máquina rodaria, em ciclos
préviamente programados, em redor do meu corpo, com breves paragens nos 4
pontos alvo, anteriormente marcados
Gostava
de ouvir o movimento característico da máquina. Nela estava depositada toda a
minha esperança. Era o meu deus - era um produto fabuloso da inteligência
humana. Vinha-me, entretanto, à minha memória, naquele momento, o que já tinha
lido sobre os cientistas que foram os pioneiros, que contribuiram com a suas
pesquisas e descobertas na área da física para a realização deste grande
invento - Tudo começou com a polaca madame Curie, e seu marido Pierre
Curie, nos seus estudos sobre radioactividade na Soborne de Paris, Madame
Curie, viria a ganhar o prémio Nobel da quimíca em 1911, Era uma história
apaixonante a vida deles, como casal e como cientistas!
Enquanto
a máquina ia queimando as minhas entranhas, o meu pensamento deambulava por
diversos temas, tentando instintivamente, fugir das razões porque estava alí.
Assim, todas as vezes que o arco do aparelho parava, em breves momentos
cronometrados, nos alvos determinados no meu corpo, para emitir os feixes
altamente concentrados de Raios X, eu aceitava com certa satisfação, aquela
incomodidade, por saber que era a única forma eficaz para a destruição das
células aberrantes, travando-as na sua caminhada, para um desenvolvimento
descontrolado e fatal!
Era
esta a rotina que, durante 40 dias, todas as manhãs, iria fazer parte do meu
quotidiano
Estávamos
em Novembro,no ano de 2007. Era por volta das 9,30 que entrava na sala de
espera. Normalmente, deparava-me com os mesmos companheiros de luta. Algumas,
tentavam estabelecer conversa para suavizar, de algum modo, o stress há muito
instalado nas suas vidas. Aquele espaço, seria durante um tempo, a nossa
catedral onde, os deuses da medicina, todos os dias, faziam os seus milagres.
Tinhamos, todos, o mesmo estatuto – estávamos em frente do touro, unidos pela
mesma luta para evitarmos a sua marrada!
As
personagens
Joana
Mulher
de 50 e tal anos, cãncer da mama. Era divorciada. tinha dois filhos.
Estava a ser “limpa” depois da cirurgia para remoção de um tumor da mama,
através de um número de sessões de radioterapia. Apresentava-se com o
cabelo rapado por opção, para evitar o aspecto caótico pela queda do mesmo,
resultado dos efeitos perniciosos da quimioterapia que acabara de fazer.
Há
rostos que conseguem aguentar, lindamente, um corte de cabelo radical e, neste
caso, preferem manter o aspecto de uma cabeça lisa, ao uso de uma
cabeleira artificial, para evitarem assim ,os incomodos que
esta comporta.
No caso
de Joana,- na sua opção tomada – em nada beliscou a beleza do seu bonito rosto,
antes pelo contrário, conferia-lhe um ar exótico. Para evitar o frio, usava,
normalmente um lenço. Era uma mulher dinâmica, estando sempre de telemóvel no
ouvido, resolvendo problemas da pequena empresa de confecção de roupa de
criança que possuia na cidade de Almada. De vez enquanto, trazia uns mimos para
saborear com os companheiros da sala, quando tiravam o café da máquina. Depois,
sentava-sempre que possível, na mesma cadeira, ao fundo da sala, onde esperava
um companheiro com quem estabelecera conversa desde o inicio. Gostava desses
momentos, a julgar pela atenção que dedicava, escutando-o com toda a atenção.
Pedro Caldeira
A
rondar os 40 e tal anos, carcinoma da próstata, executivo de uma grande enpresa
familiar de exportação, bastante alto, cabelo preto e uma madeixa a teimar
cair-lhe para a testa, que ele constantemente tentava afasta-la. Vestia um
sobretudo azul escuro que lhe conferia um ar distinto. Movimentava-se
constantemente pela sala, denunciando um certo nervosismo e intranquilidade.
Certo dia estabeleceu conversa comigo, quando subíamos no mesmo elevador – ando
há muito tempo para falar consigo, disse dirigindo-se de mão estendida. – sabe,
é que ando tremendamente desorientado com tudo isto. Muito embora o médico me
dê as respostas para as questões que lhe vou colocando, gostaria - uma
vez que está no mesmo barco - saber se está vivendo as mesmas
situações porque estou a passar. Olhe, por exemplo, sangro pelo ânus quando
faço as minhas necessidades – que me diz sobre isto? acontece-lhe o mesmo?
Disse-lhe que sim! – era uma situação que normalmente ocorria dentro do quadro
de tratamento que estavamos a ser sujeitos, em que os tecidos envolventes
ficavam bastante fragilizados pela exposição continuada dos raios X, daí
as consequentes queimaduras. – Mas o problema não é só este, há mais !
olhei para ele, aguardando interrogativamente a explicação – é que há muito tempo,
- entretanto parou, olhou para os lados para se certificar se havia alguém por
perto, baixando o tom de voz, disse-me, quase sussurrando: é que há muito tempo
a “gaita” não se põe em pé! Cocei a cabeça, por não esperar tal desabafo,
reflectindo bem na resposta a dar. – Bem , ainda não tive tempo para aferir
essa situação, pois estou, como você, numa fase de tratamento, em que tudo está
funcionando mal. Qualquer das hipóteses, no meu caso, já não representa uma
prioridade, não estando a desgastar-me com um problema que possa surgir
depois – acho que não devemos morrer de véspera – No entanto, meu caro amigo,
considerando a sua idade e a sua vida sexual estabelecida, deverá, algum tempo
depois do tratamento, saber se, a sua impotencia continua e, nesse caso,
procurar com o seu médico resolver esse problema, considerando que há soluções,
através de novos fármacos que ajudarão, certamente, a resolver essa patologia:
é uma questão de tempo! Perguntei-lhe, depois, se tinha já colocado esse
problema ao médico ? sim, já falei com ele: disse-me que o problema de
impotencia que estava sofrendo se devia em parte ao tratamento de
hormonoterapia cuja adminstração por implante na região abdominal, se destinava
a bloquear a actividade na produção de testosterona a partir dos testículos.
Com este resultado, a actividade da próstata parava, acabando por começar a
reduzir o seu tamanho e consequentemente , também, o do tumor nela existente!
Era mais fácil depois, ministrar a radioterapia com um alvo mais reduzido.
Logo, se verifica uma baixa imediata, nos valores do PSA. ( marcador específico
da próstata ) Este tratamento pode ter a duração de 6 meses, não sendo,
no entanto uma solução definitiva para a cura mas, sim, um complemento à
radioterapia pela eventual redução do tumor e evitar também, a
dessiminação das células pelo corpo. Porém, é de referir os estragos que
provoca no organismo. Um deles, por exemplo é provocar uma andropausa que,
embora provisória, não deixa, no entanto, de fustigar o nosso corpo com todos
os sintomas característicos, de certa forma identicos aos das mulheres na
menopausa – calores súbitos, suores nocturnos, e sensações estranhas,
indefenidas, de uma epécie de arrepio interno, como quem entra, de repente, num
duche bem gelado, percorrendo o corpo de alto a baixo!
Foi com
este confronto de situações que, comumente, nos afligiam, que nos despedimos,
após termos estabelecido, a partir daquele momento, um clima de aproximação e
de abordagem a outros temas de diversa ordem, Para desdramatizar, rematei este
diálogo , com uma citação brejeira de um amigo meu, homem da noite, daquele
tipo marialva que em questões de sexo nunca têm derrotas - então ele
dizia enfàticamente, quando as coisas, nesse campo, não lhe corriam bem: meu
caro amigo, fique sabendo uma coisa: não há homens impotentes mas sim mulheres
incompetentes!
Pedro,
largou uma valente gargalhada, ficara bem disposto, depois, com passo firme,
dirigiu-se à porta de saída do grande hall da recepção, onde poucoa
metros, mais à frente, um motorista lhe abria a porta de um BMW, topo de gama.
Quanto a mim apanhei o meu carro no parque de estacionamento e segui tranquilo,
ouvindo a entrevista do costume do jornalista Pedro Múrias, em ligação directa
com o RCP, sobre o relato directo das suas dramáticas experiencias, no
tratamento da sua doença, oncológica, enquanto internado no hospital e a sua
resistencia psicológica, às adversidades das sequelas dos tratamentos que
estava, no momento, a ser sujeito. Era para mim uma referencia positiva de
coragem e de luta!
Pelo
caminho para casa, ainda distante, premia depois o botão do rádio para
ouvir um CD com música a meu gosto. Sentia-me feliz por estar envolvido
no transito, porque ele representava o palpitar da vida, e eu estava ali,
também, como todos, fazendo parte dele - Estava vivo!
Ramos
Com a
idade de 75 anos, cancro do cólon, construtor civil. Chegava sempre à
sala, acompanhado por um empregado da sua pequena empresa, situada em
Carcavelos. Desde o primeiro dia que me fixava com insistência, até que, em
determinado momento, interpelou-me, perguntando se me chamava Hélder. Olhei,
então, para ele, fixando-o com toda a atenção, acabando por reconhece-lo, após
breves momentos. Era um industrial de construção civil que conheci muito de
perto, enquanto gerente de um balcão do banco, em Oeiras. Nessa altura possuia
uma grande empresa de máquinas pesadas para trabalhos de grande vulto em obras
públicas. A partir daquele momento, ia-me dando retalhos da sua vida, no lapso
de tempo em que nos perdemos. E que vida!
Tempos
atrás, algumas vezes, fui à sua casa de campo dentro duma quinta
que possuia para os lados da Terrugem – uma localidade próxima de Sintra.
Gostava de receber algumas personalidades com quem privava na sua vida
profissional. Num desses almoços, com vários convidados, estavam, também,
presentes todos os membros da sua familia – a mulher e duas filhas, ainda
jovens. Uma delas chamava a atenção pela sua excepcional beleza.Das empregadas que
estavam servindo o almoço, havia uma rapariga brasileira, também
extrordinàriamente bonita – lembrava-me que um dos pratos servidos nesse almoço
era cozido à portuguesa acompanhado de um bom vinho da região de Colares.
Também me lembrava de não resistir de deitar, de vez enquanto, uma olhadela
para a filha do Ramos, para apreciar as linhas daquele estupendo rosto. Certa
altura, talvez por estar de olho nela, reparei uma visivel e inquietante
ansiedade naquela jovem e, todas as vezes que, a brasileira, aparecia
para servir à mesa - havia uma visivel cumplicidade entre as duas, em
trocas de olhares que mais pareciam súplicas!
Terminado
o almoço e já confortàvelmente sentados numa explanada sobranceira a uma zona
ajardinada, com uma àrea grande de relva bem cuidada, estendendo-se até ao
portão com alas de plátanos de grande porte, saboreando o café e os
respectivos digestivos, dei conta de um certo desassossego do anfitrião Ramos e
a sua mulher. Era um alvoroço que não estava a ser devidamente controlado.
Algum drama estava-se desenrolando na vida do casal. Nesse mesmo momento
reparei que a filha e a empregada brasileira, em grande correria, dirigiam-se
para um WW carocha de cor amarela que estava estacionado próximo do portão de
entrada, na rua de acesso. Já dentro do carro desapareceram em grande
velocidade.
Lucinda,
assim se chamava a filha do Ramos, seguia desesperada no seu carocha, em
companhia da Isaura – a empregada brasileira - tinham de estar, às quatro
horas da tarde em Cascais. O habitual fornecedor de droga estava à sua espera.
Entretanto, o seu corpo, estava todo a tremer e as dores que sentia eram tão
intensas que estava ficando completamente fora de si. – estava na ressaca. Foi
“agarrada”, pela heroína depois de um longo percurso por várias drogas,
começando nas leves, em diversos bares de Cascais. Ela representava uma presa
apetecida dos traficantes, pelo conhecimento que tinham da vida empresarial do
pai, chantageando-a de toda a forma e feitio!
Há dois
dias que não lhe forneciam a dose que, normalmente era transportada pela
Isaura.
Lucinda
já tinha feito tudo para conseguir a verba exigida – 150 contos – junto dos
pais, desta vez sem qualquer resultado. Estes estavam consumidos por tanta
chantagem e milhares de contos já perdidos no sórdido mundo da droga, para não
falar na destruição de uma bela jovem que fenecia, dia a dia, afundada naquele
buraco negro do vício destruidor. Embora completamente despedaçados,
mantiveram-se firmes na posição acordada entre os dois. Era óbvio que, a
Isaura, também já estava “apanhada” e era eles que estavam a financiar
o consumo das duas, para não mencionar as coisas de valor, espólio da
família que há muito iam desaparecendo da residencia de Carcavelos.
O
“correio”, dentro de um BMW, estava estacionado ,à hora combinada,
próximo de uma mata do Guincho. Lucinda, completamente consternada entrou
no carro dele, dizendo-lhe que não tinha conseguido a verba exigida, - não há
dinheiro, não há negócio! Face às súplicas de Lucinda, oferecendo o seu
corpo em moeda de troca, para o fornecimento de uma dose que fosse,
prometeu-lhe falar com o “manda chuva” e que aparecesse, entretanto, pelas 23
horas, no sítio do costume, em Cascais.
Lucinda
e a brasileira, nessa noite, não foram dormir a casa! Os pais já se tinham acostumado
a estas ausencias fortuitas das duas. Era assim, com este terrivel pasadelo que
viviam ùltimamente. A vida deles estava completamente desfeita, sem alegria nem
objectivos futuros. Ele - o pai – entregava-se absorvidamente ao trabalho
na empresa: era o seu lenitivo, a mãe, por sua vez, dedicava-se a obras sociais
da igreja, principalmente, no apoio às vitimas das drogas. Desta vez, porém, a
ausencia delas nessa noite, revestia-se com uma preocupação acrescida – era o
facto de não terem cedido ao pedido da filha em lhe darem os 150 contos,
para compra da droga. Eles sabiam do perigo que ela corria, nas mãos dos
traficantes. Nessa manhã estavam, efectivamente, muito preocupados.
No dia
seguinte, Ramos foi notificado, telefònicamente, pela polícia de Cascais.
Pediram-lhe para se dirigir o mais rápido possível ao posto que actuava dentro
do hospital. Enquanto conduzia o carro, uma angústia terrível apoderou-se dele,
acompanhada de um pressentimento.
Quando
chegou ao hospital, foi ao encontro do gabinete da polícia, ali residente, logo
na entrada. O guarda, perguntou-lhe se era o sr Ramos e se tinha uma filha
chamada Lucinda, depois parando um pouco, disse-lhe, prepare-se pois vou
dar-lhe uma infeliz notícia – a sua filha foi encontrada morta, com várias
facadas no corpo, por detrás de um tapume de uma obra no centro de Cascais!
Encontra-se na morgue, para autópsia e formalidades judiciais, agradecemos a
sua colaboração, na respectiva identificação!
Acompanhei,
ainda estes episódios através do jornal. Nunca mais estive com o Ramos, porque,
entretando, fui transferido para o balcão de Belém.
Sabia,
agora, nos encontros da sala de espera, nas nossas conversas, que não
conseguindo ultrapassar a dor da perda da filha, Ramos, negociou a sua quota da
firma com o sócio, dedicando-se, depois ao negócio do imobiliário, com uma
pequena empresa que já possuia com um dos seus irmãos.
O
stress, os desgostos e um remorso acutilante, minaram as suas defesas naturais
de tal forma que abriram caminho a um processo oncológico – porque, não
tenhamos dúvidas : o cancro está latente dentro de nós, quer genèticamente
quer, ainda, se lhe abrimos caminhos através do nosso estilo de vida!
Armando
65
anos, carcinoma da próstata. Apresentava-se cuidadosamente bem vestido, dentro
do tradicional, boa aparencia, meio calvo, reformado de um Banco, bom
comunicador, trazia sempre um livro consigo. Porém, pouca utilização lhe
dava, já que preferia estar sempre próximo de Joana para manter conversa
com ela. Por sua vez, pelos vistos, ela correspondia a essa sua escolha com
agrado, mostrando, muita atenção às convesas dele, com evidente exclusividade!
Era
assim, o dia a dia, da sala de espera. No entanto, a minha estadia
naquele hospital, estendia-se a outros serviços. O restaurante no 7º
andar, era um deles. Uma grande parte do pessoal utilizava aquele espaço
onde uma empresa da especialidade disponibilizava refeições já
confeccionadas. Comida simples, adequada, de qualidade razoável. Quando estava
livre do tratamento, era alí que almoçava. Calhou, um dia, estar na frente, de
uma mulher a rondar os 45 anos vestida normalmente, sem bata, o que pressuponha
não pertencer ao quadro do pessoal . Metemos conversa ao perguntar-me se era
familiar de alguém internado no hospital, porque dava conta da minha presença
diária no restaurante. Ficou um pouco surpreendida pela minha resposta, em que
lhe expliquei a razão da minha estadia!
Raquel
Disse-me,
então,que era assistente social, prestando serviço no rés do chão, na área de
acolhimento dos doentes. Depois de vários encontros, no restaurante, as nossas
conversas iam-se aprofundando, talvez por deformação profissional, ela gostava
de me fazer frequentes perguntas. Como dispunha de algum tempo, na hora do
almoço, convidou-me a que tomassemos o café, num estabelecimento, fora do
hospital mas alí, logo ao lado.
Tinha
um rosto bonito, onde assentavam bem uns óculos de elegante “design” fazendo
realçar uns olhos de cor verde suave. Falávamos dos nossos gostos, das
nossas escolhas em diversas áreas, tentando não caír em temas que podessem
avivar as minhas preocupações tão presentes, ali, naquele ambiente!
Reparei
que ela gostava de falar sobre livros. Disse-me, sempre que tinha oportunidade
pegava neles, à noite ,quando se deitava. Era divorciada e mãe de um filho de
22 anos, com quem vivia.
Certo
dia, desfechou-me uma pergunta à queima-roupa - você tem alguma fé? É crente?
Talvez estas interrogações partissem de um pressuposto sobre minha
atitude, na confrontação com uma doença terrível ! Respondi-lhe que não - que a
fé, quanto a mim, era uma questão de postura intelectual em que partia de uma
disposição: acreditar ou não acreditar! – mas, interrompeu-me ela, você não se
questiona sobre a solidão de uma alma deserta, sem tábua de salvação em que se
possa agarrar nos momentos díficeis que surjam na sua vida? Sim, tenho pensado
muitas vezes nisso, respondi-lhe apreensivo – de facto é tremendamente
perturbante não termos nada onde nos agarrarmos e estarmos confrontados com uma
realidade nua e crua, é como o náufrago sem uma tábua de salvação! É a grande
factura a pagar pela clarividencia. Pelas escolhas das nossas certezas!
Por
outro lado, entendo que, o percurso da humanidade e na sua relação com o
místico, está nas suas interrogações sem respostas que obrigará à constante
pesquisa, dentro da lógica da ciencia. Raquel, escutou com atenção e
olhando para mim, com um ar travesso, disse – será que você leu Roger Martin
DuGard? Sim, de facto, li o Drama de João Barois, numa idade em que os
idealismos se alicerçam nos paradigmas que os grandes pensadores nos vão
transmitindo. As religiôes, neste caso a Católica, não preenche esse quadro de
anseios e interrogações, porque a sua resposta é, em determinado momento,
inexistente – é o dogma! O catolicismo, não pode acompanhar a evolução
porque é uma filosofia de revelação – é o seu grande espartilho!
Raquel
não se ficava com a minha interpretação que, afirmava ser radical, - acho que
você está fazendo a sua leitura muita simplicista das grandes questões do
pensamento humano. - Bem, então para terminar ocorre-me uma citação de um
grande filósofo português, mais ou menos isto: “ o Homem, quando pela primeira
vez olhou o céu e se interrogou ao ver as estrelas, inventou Deus” – Você é
incorrigível, disse-me com um sorriso!
Depois
de algumas destas conversas filosóficas, passávamos para outros temas, menos
complexos, trocando impressões da nossa vivencia naquele hospital, cheio de
recortes de dramas humanos que ela, por força da sua própria profissão, tão bem
conhecia.
Entretanto,
os tratamentos chegaram ao fim. Estávamos em Dezembro. O técnico esponsável,
homem novo e bem apetrechado de sabedoria, deu-me o resultado num relatório
escrito, do meu comportamento físico em relação às sequelas normais do
tratamento. A garantia da sua eficácia eram 5 anos, que deveria ser devidamente
acompanhada, a partir daquele momento, pelo meu medico urologista. Pela
primeira vez, na minha frente, encontrei um homem com a capacidade de me
explicar minuciosamente os problemas inerentes à doença e dando-me nota dos
comportamentos que futuramente teria de encarar, inclusivamente nos cuidados
alimentares que devia seguir.
Decorridos
três meses, já com o primeiro resultado das análises em meu poder, entrava ,
novamente no hospital, para uma consulta médica de primeira avaliação,
após tratamento, prèviamente marcada e lembrada através de mensagem enviada
pelos serviços, para o meu telemóvel. Fui atendido, como sempre, com
cordialdade, pelo médico urologista. Perante a palpação da próstata e os
resultados dos valores do PSA demonstrados nas análises, com o valor “0”,
deu-me a notícia que tinham sido alcançados os resultados esperados, estando
convencido da minha cura.
Foi uma
palavra de esperança. Saí do gabinete com uma satisfação evidente, porque o
touro, ainda, desta vez, não me tinha dado a marrada!
Mais
tarde, alguns meses, depois, numa visita de rotina, numa tarde fria de inverno,
encontrei Joana no hall do Hospital. Tinha, entretanto, recuperado o cabelo e,
como sempre, continuava uma mulher bonita. Quase que, não a reconhecia, não
fora o sua chamada pelo meu nome. Abraçou-me demoradamente e com grande manifestação
de alegria. Puxando-me pelo braço disse-me: vamos beber um café, bem quentinho,
alí, naquele café, ao lado do edifício.
Já
sentados na frente de uma meia de café com leite, um café e dois bolos, demos
largas à nossa saudade e ansiedade na obtenção de notícias de como estavam a
evoluir os nossos problemas de saude. – Então, o que tem feito, meu amigo? Está
com bom aspecto, disse-me. – bem, não me queixo do aspecto, qualquer as formas
estou, agora, atravessando aquela fase, resultante das sequelas impostas pelo
próprio tratamento mas, enfim, vou passando razoavelmente bem, especialmente no
aspecto psicológico. – E a minha amiga? – Olhe, digo-lhe que tenho passado bem.
O meu médico diz-me que tudo está correndo dentro da normalidade esperada. Estou
fazendo a minha vida, como antes e, como pode constatar já tenho o meu rico
cabelo de volta. – Com um jeito sacudido da cabeça fez movimentar todo o seu
volume. De facto estava linda e a côr ruiva assentava-lhe mesmo muito bem!
Com um
certo constrangimento, arrisquei perguntar-lhe pelo Armando, se continuava a
vê-lo? – sim, respondeu-me : ele também tem passado bem, com os mesmos
problemas que, você também, já me disse estar a passar. Mas olhe, vou ser muito
franca e um pouco mais directa, sobre aquilo que, certamente, terá curiosidade
em saber! – sabe, há momentos nas nossas vidas que nos fazem saír da nossa
costumada racionalidade ou até, do nosso comportamento línear, habitual !
certos ambientes, determinadas situações, por vezes, podem despetar-nos estados
de alma em nós há muito adormecidos! Aquela sala, em certa altura, tinha uma
magia. Sentia-me bem quando falava com o Armando, recuperando a minha
auto-estima aos poucos, com o facto de um homem estar a partilhar, os seus
problemas comigo. Ele é um bom conversador, alimentando-me o espírito e a minha
curiosidade, interessando-se bastante por mim. Isto cai bem a uma mulher,
muito especialmente se estiver fragilizada como eu estava, naquele momento.
Portanto, aquela sala, representava para mim, o último reduto da minha
esperança para a cura. Todo aquele ambiente, era mágico, era surreal. Por outro
lado e sem ironia, foi onde consegui, ao fim de alguns anos, ter o meu próprio
tempo, com o Armando a meu lado! Quando regressei à rotina da minha vida, após
o tratamento, voltei a ser aquela mulher pragmática, exigente, sem espaço para
mim, muito menos para os outros. Gerir uma empresa com trinta trabalhadores,
nos tempos que correm, como pode depreender, é muito dificil, requerendo
grande empenhamento e sacrificios de ordem pessoal. Uma grande parte da nossa
produção destina-se ao mercado espanhol e inglês e não nos podemos dar ao luxo
de termos devoluções. A minha filha é responsável por tudo o que diz respeito
ao design, contando comigo para lhe dar todo o apoio possível e por vezes, até
na sua vida pessoal, na atenção que os meus netos precisam. Ela é a estilista
da nossa empresa.
Portanto,
meu amigo, não tenho tempo para mim, para poder desfrutar de uma relação séria
e assumida. É verdade que nutro uma grnde amizade pelo Armando e mantemos esse
sentimento vivo, com algumas ecapadelas para podermos estar os dois com alguma
intimidade. Além do mais, - não sei se sabe – ele ainda é casado. A mulher dele
está internada num lar, sofrendo de Alzheimer, numa fase avançada. Teria
desgosto não poder contar com a sua amizade, porque, ele, é o que me resta em
termos de afectos sentimentais – depois do meu divórcio, nunca tive qualquer
ligação amorosa. Portanto, não quero perder o Armando de todo. E, pronto: agora
que já despejei o meu saco, diga-me você o que tem feito? Bem, seria a minha
vez de o fazer mas, passou-se tanta coisa a alterar radicalmente a minha, com a
doença da minha mulher, que resolvi omitir tais ocorrencias para não dramatizar
o ambiente, preferindo referir-me a banalidades, tais como livros que tinha
lido e outras coisas sem interesse, como sendo o meu súbito interesse pela
culinária!
A noite
tinha caído já há muito. Olhei o relógio, Joana levantou-se compondo o vestido.
Ambos caminhámos em direcão a um “Renault espace” – era o carro dela.
Despediu-se de mim com um abraço e um beijo – espero voltar a vê-lo – um cheiro
agradável do seu perfume envolveu o meu rosto por breves momentos – já lhe dei,
anteriormente, o meu número de telefone – disse,me enquanto abria a porta do
carro: espero que não o tenha perdido! O motor do Renault começou a trabalhar –
fiquei por momentos a vê-lo desaparecer na curva, com os olhos fixos nas luzes
dos stops que brilhavam intensamente, naquela noite fria de inverno. Aconchegando
o cachecol em redor do meu pescoço, fui buscar o meu carro estacionado no
parque. Já a caminho de casa, pensava, com desgosto que, talvez, não voltasse a
vê-la, porque ela, como tantas outras, era uma mulher sem tempo!
Hélder Gonçalves
Julho 2010
Julho 2010
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